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INTROSPECÇÃO — O Morto Virado — pt.14

  A morte de Afonso deixou a família sem eira nem beira. «Era um homem de cérebro profícuo, bastante reflexivo e sonhador», pensava Mendes, o irmão que o seguia na linhagem e que, por vias travessas e logros da adolescência, rumou para marinha. A mãe chorava de tão inconsolada, foi a Afonso que confiou um bom futuro. Parecia ter bom futuro; ao menos, o desempenho académico asseverava tal facto. O coração estóico e o olhar militarizado do pai elidiam até a mínima névoa de dor que transparecesse; alguns o julgavam insensível, augurava-se uma reacção menos retesa e mais humana. Num súbito ataque cardíaco, a primogenitura de nove irmãos “desmapeou-se” para Sempre. O que é precisamente Sempre? Nunca mais. Assim é o cíclo vital: nunca mais será sempre. Amigos, colegas, vizinhos e outros (que não conheço) recordavam alguns momentos passados com o ex-vivo. —Foi uma boa pessoa. Deus o manterá em Sua memória— disse uma possível amiga, mesmo sabendo que Afonso era descrente. Os outros con
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INTROSPECÇÃO — À IMAGEM DO PAI DO OUTRO — Parte 30

Nove meses depois, lá estava aquela nova e minúscula criatura com feições humanas e futuro indecifrável. Talvez seja alguém importante; mas, como a luta para ser-se alguém é demasiado agressiva, é mais provável que seja só mais um diabrete frustrado.  O parto foi um pesadelo. Maria estava extenuada, se não fosse pela pressão familiar, teria abortado. E o pai? Bem, havia um homem do outro lado da vidraça a quem se atribuira a paternidade. José bradava de alegria ao ver o filho. Ou é melhor dizer enteado? De qualquer jeito, ele não sabe. «Privar um homem de uma verdade trágica é assegurar a sua felicidade», pensava Maria. — Que filho lindo, tu me deste, amor! — disse José emocionado à mulher. Maria desenhou um sorriso forçado, enquanto lhe lia as convulsões do rosto. José acreditava piamente que a parceira lhe era fiel; nem mesmo depois do casamento, cogitara a hipótese de ela já não ser virgem. Uma hipótese inexistente quando o mínimo de experiência sexual se resume à púbere fricção pen

INTROSPECÇÃO — O VALOR DAS COISAS — pt. 22

Era noite de Cacimbo, mas não uma noite qualquer. Havia um frescor diferente naquela noite. Era uma noite masturbativa. Samuel chegou a casa repleto de sorrisos, pois o relógio biológico profetizara aquele momento: as primeiras horas de uma curta folga. As paredes exalavam solidão, as mobílias gritavam no silêncio do desuso, excepto a cama. A cama sempre teve utilidade, contudo a felicidade dela, naquele instante, ia além de qualquer perspectiva utilitarista. Não seria apenas um leito, seria parte de uma fantasia sexual. Cada movimento tinha de ser calculado. A delicadeza mantinha a libido em alta. Não mais a grotesca e primata forma de segurar o pênis, a mentalidade ocidental não permitia. O contacto peniano começava com o reavivamento da memória. Sim, uma memória que trouxesse a presença de um vulto feminino de cara angelical, seios aveludados e bunda generosa — um espírito felino e totalmente virgem. A conexão paradisíaca foi interrompida por um inevitável contra

NÃO SEJAMOS COMO ÍCARO

Segundo a mitologia grega, havia um jovem chamado Ícaro na Ilha de Creta. Devido a uma situação, Ícaro foi obrigado a partir com o pai, Dédalo, para a ilha mais próxima: Sicília.  Pai e filho tiveram de usar asas artificiais para diminuir o tempo de viagem. Contudo, o jovem Ícaro não levou em consideração o aviso do pai de que não podia voar alto demais para não ser queima do pelo Sol nem baixo demais para não acabar caído no mar.  Compenetrado pelo ego, Ícaro voou até ao Sol, queimou-se e caiu no mar que, hoje, se conhece por Icária. Dédalo, entretanto, seguiu caminho à Sicília. No mundo em que vivemos, a ousadia é sagrada. É sinónima de juventude e jovialidade. Nós, jovens, supondo que o leitor também seja jovem como eu, vivemos cheios de certezas. Raras são as nossas dúvidas. Sabemos sempre o que fazer.  Quando tudo dá para o torto, encontramos sempre os nossos invejosos. Desvincular-se das responsabilidades é também parte de nossos tempos.  É muito provável que Ícaro culpass

AS VÁRIAS FACES DE JESUS

Tanto a História quanto a Teologia são áreas assaz fundamentais. O que distingue essencialmente a História da Teologia: crítica histórica versus fé. O historiador deve ser objectivo ao máximo para não diluir de subjectvismos anacrónicos a análise dos factos, por um lado. O teólogo, por outro lado, serve-se da hermenêutica religiosa e de dados arqueológicos para melhor sustentar a fé. Qual é a melh or? Ambas são proveitosas — pois se embasam de acertos, erros, tentativas e redescobertas. Isso podemos comprovar nesta obra histórico-teológica de Geza Vérmes. Como ainda é o mês de «Todos-os-Santos», nada melhor que tentar entender os cerca de 1500 anos de construção cristológica e selecção de cânones; da patrística ao protestantismo, de Paulo de Tarso a Eusébio de Cesaréia, do Concílio de Nicéia ao de Trento, da Septuaginta à Vulgata Versio, dos escritos expúrios aos apócrifos. O acervo de conhecimento é enorme e denso. Desdigo o que antes costumava defender deste modo: «Dizer q

INTROSPECÇÃO — UMA RELAÇÃO DE PODER — pt. 15

Passaram-se seis meses desde a inexplicável morte de Afonso. A póstuma revelação da homossexualidade do primogénito ainda assombrava a família. O pai, agora reformado da vida militar, refugiava-se na busca de prazeres que não mais encontrava nas funéreas paredes de casa. Uma casa que já fora um lar. Assim que o Sol se punha, ligava para Pedro, o mecânico, que sempre se mostrava prestativo. Iam juntos divertir-se algures no bairro do Povoado, na Samba. Durante o percurso, debatiam a questão de os portugueses terem maior margem de manobra que os nativos no País e as formas neocoloniais de inferiorização cultural praticadas pelo próprio Angolano contra os compatriotas. — Antigamente, depois que um escravo obtinha a carta de alforria, ele retomava a casa e cultuava a cultura esclavagista do ex-dono. A inferioridade em relação ao patrão convertia-se em superioridade em relação ao irmão. A língua e os modos do senhorio transferiam-se para a vassalagem. A grande estratégia colonial era:

INTROSPECÇÃO – O ESTRANGEIRO NATIVO – pt.13

Volvidos 4 anos de estudos intensos na diáspora, Afonso voltava ao País que o viu surgir. Era aguardado com bastante expectativa. Os parentes orgulhavam-se pelo feito; em África, quanto mais modos europeus a pessoa tiver maior será o júbilo e o prestígio da família.  Os amigos recebiam-no com abraços acalorados.  Serão verdadeiros? Quem identifica falsida de no outro é tão falso quanto ele. A dissimulação é humana, aceitar que se é dissimulado não.  Afonso mastigava de modo camoniano o português enquanto discorria sobre seus projectos e realizações. Todos boquiabertos e aparvalhados se prestavam para ouvir aquela apoteótica deidade. Nascia entre as crianças uma névoa de esperança que solidificava o desejo hereditário pelas proezas do Ocidente. Embora fossem física e emocinalmente diferentes, as mulheres não conseguiam impedir a actuação da natureza atrelada ao senso comum: homem bonito, bem-apessoado, realizado e culto. Elas flertavam auditivamente. Os homens ensopavam-